Se há uma coisa que nenhum arquiteto pode reclamar é a maneira de encarar a vida. Uma vida que normalmente é bastante dura, mas recheada de deslumbramento, de prazeres refinados e de muita, muita criatividade. O diferencial é que a obra do arquiteto normalmente perdura por muito mais tempo que a obra de outros profissionais, como, por exemplo, os de propaganda que muito exige da memória do público.
Arquitetura tem um prazer silencioso. Um prazer também existente na obra de arte pública, como no Monumento às Bandeiras de Victor Brecheret, onde a obra possui uma característica urbana, muito além do objeto artístico. Como afirma o filosofo espanhol Ortega y Gasset, a “arquitetura é uma arte étnica e não se presta a caprichos. Sua capacidade expressiva não é muito completa, pois, os amplos e simples estados de espírito, os quais não são de caráter individual, mas de um povo ou de uma época. Além do mais, como obra material supera todas as forças individuais: o tempo e o custo que supõe fazem dela forçosamente uma manufatura coletiva, um trabalho comum, social.” Muito desse caráter que Ortega y Gasset trata, também pode haver relação com outro pensamento encontrado na obra mais conhecida de Gordon Cullen, Paisagem Urbana: “Se me fosse pedido para definir o conceito de paisagem urbana, diria que um edifício é arquitetura, mas dois seriam já paisagem urbana, porque a relação entre dois edifícios próximos é suficiente para libertar a arte da paisagem urbana.” (pág. 135).
Trabalhando sobre estes pensamentos, poderia definir que a arquitetura, além de ser uma arte coletiva, só existe se ligada a uma função. Há como haver arquitetura sem função, mas está então não seria também somente uma obra de arte? Ou seja, se há então, uma função, uma arte e uma estrutura técnica para existir, para se por em pé, teria então a triade vitruviana? Sim, diria eu, inocentemente... Não tenho como confirmar estas pequenas questões, mas insisto que este seria um caminho a percorrer na vida arquitetônica.
Retornando ao tema central deste texto, a maneira de viver de um arquiteto, normalmente se baseia na busca de um trabalho em harmonia do ambiente, dos materiais e de quem usufruirá deste local. Pensar num teatro, numa biblioteca, num clube, numa casa com piscina, numa cadeira, numa sala, num dormitório, envolve sempre um fator humano em primeiro lugar. Lembro-me de um dos meus primeiros contatos com o universo arquitetônico, numa palestra sobre a profissão de arquiteto na FAU-USP, lá por volta de 1995, onde não lembro ao certo se foi o prof. Issao Minami ou o prof. Minoru Naruto, falou sobre a parte técnica e da humana da arquitetura, onde ela é uma ciência humana ao mesmo tempo também uma ciência exata. Lembro também de uma frase do arquiteto Oswaldo Arthur Bratke, na edição especial dos 50 anos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Mackenzie (1947-1997): “Arquitetura é a profissão mais gostosa que tem. Quando você procura um médico? Quando tem algum problema. Quando procura um advogado? Quando há pendências. Para que se procura um arquiteto? Para construir uma casa, para organizar um espaço para viver e trabalhar, enfim, para algo bom, gostoso.”
Não sei dizer, mas toda vez que escuto falar em Sergio Bernardes, do seu filho Cláudio Bernardes, (já falecidos) ou do seu neto Thiago Bernardes, sempre me vem à mente um escritório grande, de bastante volume de trabalho, mas de um local gostoso, de trabalho com prazer. Lembro de ler uma entrevista de Sérgio, falecido em 2002, onde falava que mesmo aos 80 anos de idade ainda trabalhava 12 horas por dia. Não se pode dizer que não é dura a vida de arquiteto, mas ao ver o resultado das mais de 1500 residências realizadas por seu escritório, é um trabalho da mais alta qualidade. Um trabalho, como se pode ver, um tanto quanto invisível. Não há sequer uma publicação dessa obra completa em livro. Há, claro, publicações em inúmeras revistas, nacionais e estrangeiras.
Este trabalho “invisível” muitas vezes é de um prazer enorme, como muitas vezes pode trazer traumas ou toda uma atitude autoritária. O lado individual e coletivo do arquiteto deve andar também sempre em equilíbrio. A busca deste equilíbrio é em muitas vezes aquilo que sai da arte e entra no “negócio”, no lado empresarial da situação.
Hoje a existência de inúmeros escritórios “corporativos”, interessados na gestão de projetos padronizados, retirando muito da questão “artística” do arquiteto para formalizar uma arquitetura “comercial”. Este efeito poderia dizer que é causado por tratar a arquitetura não como uma função, mas como um dos fatores indutores de consumo ou imagem. Veja que aqui nada estou falando de mal das questões de consumo, elas fazem parte das relações humanas, mas o grau de funcionalidade da arquitetura exigida para estes casos é muito menor do que se apresenta ou é pedida. Fazendo uma volta às aulas de teoria da arquitetura, aquele modelo arquitetural chamado “ativista”, não é nada mais que uma arquitetura com tempo de vida, com a função de surpreender e logo se superar. É a arquitetura do parque de diversões; é de certa forma a mais cênica das arquiteturas. Não há nada de errado com ela, pois, em muitos casos, é a forma de manter em atividade um escritório de arquitetura. É mais um dos “meios de vida da arquitetura”.
Lembrado que a arquitetura possui um número grande de formas de atuação, como o projeto de edificação, o paisagismo, a arquitetura de interiores, o desenho industrial (comunicação visual e projeto de produto), o urbanismo, o restauro, além das funções de reflexão e crítica arquitetônica, poderia dizer que em todas as áreas há sempre quatro tipos de profissionais: aqueles que são os idealizadores, que conseguem erguer conceitos que norteiam todos os outros; aqueles mais políticos que conseguem conquistar fatias de mercado; aqueles empresários que vêm no trabalho arquitetônico uma forma de negócio, de resultado financeiro e por fim aquele que faz o que os três anteriores determinarem. Há nessa relação dos quatro grupos uma harmonia indiscutível. Todos têm seu dever a cumprir, assim como todos tem sua parcela de prazer. Não há ai nenhuma desvantagem em nenhuma das quatro categorias de profissionais, somente que cada uma viverá de acordo com seu grau de risco e de liberdade, assim como também em termos de rendimento financeiro.
A complexidade e a contradição já fazem parte da arquitetura contemporânea há tempos, e não caberia neste pequeno texto voltar a elas e nem esgotar este assunto. Mas é interessante voltar à questão de como é a vida de arquiteto e mostrar que ela é heterogenia tanto quanto outra profissão qualquer, não cabendo aqui tentar dizer que arquitetos podem trabalhar de chinelos ou que são sempre artistas. Mas vale dizer que nunca um arquiteto vai ter a ação e o risco de uma profissão como a de policial ou a de bombeiro e que pode demorar muitos anos para que alguém possa trazer um elogio a sua obra construída, assim como pode ter sua obra destruída ou concluída parcialmente, desvirtuando sua concepção original. Nem tudo são flores na vida arquitetônica, mas nem tudo também é desanimador. Há sempre uma agradável harmonia nas situações arquitetônicas. Há sempre uma forma de debater este tema sobre qualquer uma das quatro categorias listadas acima. Por todas elas há sempre um caminho...