abril 02, 2010

Jovem demais para morrer...


Num dia nada especial, numa noite sombria, resolveu que não mais deveria pertencer a este mundo. Sua resolução era reflexiva; pensava nos amigos, na tia, cuja casa dividia, na ex-esposa e na musa inspiradora de suas plácidas obras de arte, que produzia de forma quase incessante. Os quadros revelavam a verdadeira veia do artista, principalmente ao trabalhar os tons de vermelho sob o fundo branco. Seus traços eram jovens; muito mais jovens que sua verdadeira idade. Assim como o senhor Gray, sua face parece não padecer das ações do tempo.

Havia escolhido a noite para realizar o feito; o mal feito. A noite para ele era um momento mágico e ao mesmo tempo algo terrível. Mágico, pois conseguia produzir sem parar, sem atender ao telefone, sem falar com as pessoas. E terrível justamente por não perguntar para as pessoas como está indo sua produção. Sua vontade em dividir o processo criativo o amargava demais durante a noite. Como não perguntar à tia e aos amigos se gostam das cores, dos traços e se estes estão próximos ao rosto e corpo da musa, cuja inspiração não parava. Mas já havia decidido: sua vida não fazia mais sentido. Pensou em tudo, atualizou sua agenda, resolveu pendências e deixou tudo em ordem para aqueles que herdariam seu patrimônio sem valor material. Tinha seu rico dinheiro, oriundo de um marchand amigo, que vendia seus quadros. Claro, somente os que não achava perfeitos. É talvez o único artista que só vendia o que não gostava em sua produção. Sua vida era uma propaganda enganosa ambulante.

Não achava que as artes plásticas eram importantes para além do próprio artista. Mas sua maior vontade era fazer com que seus desenhos vivessem para sempre. Sempre lembrava das memórias póstumas, escritos centenários de seu autor de cabeceira, principalmente de sua dedicatória primeira. Pensava em como a matéria é imperfeita e que a condição de não poder compartilhar do mesmo solo sagrado de outros tantos não o afligia. Pensava sempre em Nicolò, proibido pelo bispo de Nice de se deitar eternamente, por conta de sua exibição de virtuosismo, como se fosse possível virtuosismo sem sua exibição.

Uma luz se acendeu no terraço com piso de pedras recobertas de uma pequena camada de musgo. Pensava em que o escuro completo não iluminaria seu caminho por entre as barcas. O tempo foi passando e ele ali parado, roendo as unhas. Já ao final da noite, próximo ao nascer do sol, decidiu que deveria mudar tudo. Não poderia ir embora antes de sua musa. Virgilio talvez o acompanhasse nas primeiras barcas, mas a principal delas somente poderia ir com Beatriz. E, num discurso semelhante ao proferido por Scarlett O’Hara, manifestou seu desejo de se livrar de seus desenhos todos e buscar a felicidade numa nova fase. Uma fase em que se sentia novamente jovem, com seu fôlego igual ao de um atleta olímpico. E no pequeno rádio tocava uma velha música conhecida...

Let's dance in style, let's dance for a while
Heaven can wait we're only watching the skies
Hoping for the best but expecting the worst
Are you going to drop the bomb or not?

Let us die young or let us live forever
We don't have the power but we never say never
Sitting in a sandpit, life is a short trip
The music's for the sad men

Can you imagine when this race is won
Turn our golden faces into the Sun
Praising our leaders we're getting in tune
The music's played by the mad men

Forever young, I want to be forever Young
Do you really want to live forever?
Forever, or never 

Forever young, I want to be forever Young
Do you really want to live forever?
Forever Young (...)


Forever Young - Alphaville (1984)

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